segunda-feira, 16 de março de 2009

"A Poesia Surge do Espanto"



De repente, quando se ergue da cadeira, o poeta percebe que o fêmur de uma perna resvala no osso da bacia. Aquilo o intriga. “É desse tipo de surpresa que nasce um poema”, diz Ferreira Gullar

Por Armando Antenore

Certa manhã, enquanto fazia recortes para novas colagens, notou que umas tiras miúdas de papel salpicavam o piso da sala. Mal se abaixou com a intenção de recolhê-las, viu que formavam um desenho abstrato. A figura inusitada e bela surgira de modo espontâneo, à revelia de qualquer pretensão estética. O escritor, hipnotizado, apanhou os pedacinhos de papel e os fixou em uma cartolina amarronzada exatamente da maneira como caíram no chão. Batizou o trabalho de Por Acaso, Puro Acaso. Quem percorre o apartamento carioca logo avista a composição pendurada numa nesga de parede e um tanto oprimida pelas dezenas de outros quadros e gravuras que decoram o imóvel — a maioria de artistas tão míticos quanto Iberê Camargo, Rubem Valentim, Oscar Niemeyer e Marcelo Grassmann. "Todos bons amigos", comenta o dono da casa, com um híbrido de displicência e orgulho.

O episódio dos papéis revela muito sobre o jeito de o poeta enxergar a vida e o ato criativo. Para o autor do célebre Poema Sujo, viver (ou criar) é o resultado de um diálogo contínuo entre o arbítrio e o inesperado, a ordem e a desordem, a necessidade e o acaso. O assunto veio à tona numa tarde abafada de fevereiro, ao longo da conversa de três horas que Gullar manteve com BRAVO!. O apartamento de Copacabana, silencioso àquela altura do dia, serviu de cenário.

Viúvo, o maranhense namora a poetisa gaúcha Cláudia Ahimsa. Ele a conheceu durante a Feira do Livro de Frankfurt, na Alemanha, em 1994. Pouco tempo antes, amargara a morte da mulher, Thereza Aragão, e de um dos três filhos, o caçula Marcos. Inspirado pela atual companheira, escreveu os versos "Olho a árvore e já/ não pergunto 'para quê?'/ A estranheza do mundo/ se dissipa em você".

BRAVO!: O senso comum costuma apregoar que poetas nascem poetas. Poesia é destino?

Ferreira Gullar: Prefiro dizer que é vocação. O poeta traz do berço um modo próprio de lidar com a palavra. Não se trata, porém, de um presente dos deuses, de uma concessão divina, como se pregava em outras épocas. Trata-se de um fenômeno genético, biológico, sei lá. Há quem nasça com talento para pintar, jogar futebol ou roubar. E há quem nasça com talento para fazer poemas. Sem a vocação, o sujeito não vai longe. Pode virar um excelente leitor ou crítico de poesia, mas nunca se transformará num poeta respeitável. Quando um jovem me mostra originais, percebo de cara se é ou não do ramo. Leio dois ou três poemas e concluo de imediato. Por outro lado, caso o sujeito tenha a vocação e não trabalhe duro, dificilmente produzirá um verso que preste. Se não estudar, se não batalhar pelo domínio da linguagem, acabará desperdiçando o talento. "Nasci poeta, vou ser poeta." Não, não funciona assim. Converter a vocação em expressão demanda um esforço imenso. Tudo vai depender do equilíbrio entre o acaso e a necessidade. A vocação é acaso. A expressão é necessidade. Compreende a diferença? No fundo, a vida não passa de uma constante tensão entre acaso e necessidade.

Nada escapa desse binômio?

Nada. O que faz o homem sobre a Terra? Luta para neutralizar o acaso. Eis a principal necessidade humana: driblar o imprevisível, a bala perdida. Concebemos Deus justamente porque buscamos nos proteger da bala perdida. Deus é a providência que elimina o acaso. É o antiacaso.

Você não crê que Ele exista?

Gostaria de acreditar, mas não acredito. Uma pena... Poucas crenças podem ser mais reconfortantes do que a fé em Deus. Ele enche de sentido as nossas vidas sem sentido. "Eu não sou cachorro, não!", cantava o Waldick Soriano, lembra? Uma frase sugestiva, já que os homens realmente não se veem como cachorros. Os homens anseiam uma condição sublime. Não à toa, inventaram Deus: para que Deus os criasse. Se você pensar direito, todas as coisas abstratas ou concretas que a humanidade constrói têm a intenção de dar significado à vida — e, não raro, um significado especial. Nós, que frequentemente praticamos atos injustos, inventamos a justiça. Por quê? Porque desejamos ser melhores do que somos e tornar menos insolúvel o mistério de viver. A arte surge pelo mesmo motivo.

Conclui-se, então, que o poema também almeja dar significado à vida.

O poema nasce do espanto, e o espanto decorre do incompreensível. Vou contar uma história: um dia, estava vendo televisão e o telefone tocou. Mal me ergui para atendê-lo, o fêmur de uma das minhas pernas bateu no osso da bacia. Algo do tipo já acontecera antes? Com certeza. Entretanto, naquela ocasião, o atrito dos ossos me espantou. Uma ocorrência explicável de súbito ganhou contornos inexplicáveis. Quer dizer que sou osso?, refleti, surpreso. Eu sou osso? Osso pergunta? A parte que em mim pergunta é igualmente osso? Na tentativa de elucidar os questionamentos despertados pelo espanto, eclode um poema. Entende agora por que demoro 10, 12 anos para lançar um novo livro de poesia? Porque preciso do espanto. Não determino o instante de escrever: "Hoje vou sentar e redigir um poema". A poesia está além de minha vontade. Por isso, quando me indagam se sou Ferreira Gullar, respondo: "Às vezes".

A falta de controle sobre o ato de escrever o angustia?

Não, em absoluto. A experiência de criar um poema é maravilhosa. Mas, como não depende inteiramente de mim, sei que corro o risco de nunca mais vivenciá-la. Se parar de fazer poesia, vou lamentar — só que não a ponto de disparar um tiro na cabeça. Nenhum poema, de nenhum poeta, me parece imprescindível. Dante Alighieri poderia não ter escrito A Divina Comédia. Ou poderia tê-la escrito de outro jeito. Novamente: tudo se subordina à lei do acaso e da necessidade.

Um poema deve sempre emocionar?

Sim, deve emocionar primeiro o poeta e depois o leitor.

O pernambucano João Cabral de Melo Neto, com quem você conviveu, pensava diferente, não? Ele preconizava uma poesia menos emotiva.

João Cabral gostava de mentir! (risos) Pegue o poema O Ovo de Galinha e veja se aquilo não comove o leitor. Você acha que o João também não se comoveu ao escrevê-lo? Lógico que se comoveu! Na verdade, João recusava a ideia de o poeta transformar a poesia em confessionário, em objeto do sentimentalismo. Daí proclamar que o poema tinha de ser uma construção intelectual. A razão lhe serviu de bússola. No entanto, paradoxalmente, inúmeros de seus versos não resultaram tão frios. À medida que o tempo passa, o João se revela cada vez mais complexo, uma soma de contradições — o que, no fim das contas, só aumenta a grandeza dele.

Você concorda quando os críticos apontam o Poema Sujo, de 1975, como sua obra máxima?

Difícil responder. Não me debrucei profundamente sobre o assunto... O Poema Sujo é, de fato, o que reúne o maior número de interrogações e descobertas — em parte, pela extensão (os versos se espalham por quase 60 páginas); em parte, pela febre criativa que me assaltou enquanto o redigia. Entre maio e outubro de 1975, fiquei imerso no que classifico de "estado poético". Nada me tirava daquele clima. Eu comentava, brincando, que me tornara uma espécie de rei Midas. Tudo em que botava a mão virava ouro, tudo virava poesia. Foi uma fase excepcional. Para mim, porém, trabalhos mais recentes podem ter importância idêntica à do Poema Sujo, por exprimirem reflexões novas, algo que não me ocorrera dizer antes.

Uma parcela da crítica sustenta que você é o maior poeta brasileiro vivo. É mesmo?

Imagine! E como se mede o tamanho de um poeta?, já perguntava Carlos Drummond de Andrade. Que régua consegue dimensionar um negócio desses? Claro que, quando escuto uma avaliação do gênero, me envaideço. Mas não me iludo. Cada poeta, vivo ou morto, é inigualável. O João Cabral, o próprio Drummond, o Vinicius de Moraes, o Mário Quintana nos transmitiram um legado riquíssimo. São inventores de um universo muito pessoal e insubstituível. Sem mencionar o Murilo Mendes, autor de pérolas tão lindas quanto "A mulher do fim do mundo/ Chama a luz com um assobio".

Poeticamente, você jamais permaneceu num único lugar e sempre procurou a renovação. Em contrapartida, como crítico, acabou recebendo a pecha de conservador, por rejeitar diversas manifestações da arte contemporânea. O rótulo o incomoda?

Não, não me incomoda. Nesta altura do campeonato, quando o vale-tudo se apoderou das artes plásticas, a qualificação de "conservador" perdeu sentido. Conservador por quê? Por diferenciar expressão e arte? No meu entender, toda arte é expressão, mas nem toda expressão é arte. Se me machuco e grito de dor, estou me expressando; não estou produzindo arte. Da mesma maneira, se alguém começa a bater numa lata, emite sons; não cria música. O filósofo francês Jacques Maritain, católico, afirmava que a arte é "o Céu da razão operativa". Ou melhor: é o ápice do trabalho humano. Arte, portanto, pressupõe o "saber fazer". Saber pintar, saber dançar, saber esculpir, saber fotografar, saber tocar, saber compor. Tal critério prevaleceu durante milhares de anos, desde as cavernas até o advento das vanguardas, no final do século 19, período em que se questionou o "saber fazer". Pois bem: sob a minha ótica, a preocupação vanguardista é um fenômeno que se esgotou. Por milhares de anos, a arte seguiu adiante sem ligar para o conceito de vanguarda. Ninguém me convencerá de que, em pleno século 21, crucificar-se na traseira de um Fusca, deixar-se filmar cortando a vagina ou masturbar-se numa galeria equivale a um gesto artístico. Segundo o norte-americano John Canaday, historiador da arte, os críticos de hoje temem repetir o erro cometido pelos críticos do século 19, que não compreenderam os impressionistas. Em consequência, assinam embaixo de qualquer bobagem que levante a bandeira do "novo". Percebe a armadilha? Caso três ou quatro artistas resolvam espremer uma bisnaga de tinta no nariz de um crítico, ouvirão dele que praticaram um ato inovador. Definitivamente, não penso desse modo.

Nos tempos de militância comunista, você usou a poesia com fins políticos. O engajamento dos poetas ainda se justifica?

Não, de jeito nenhum. Os poetas, agora, irão se engajar em quê? No socialismo ridículo do Hugo Chávez? Foi um engano imaginar que versos contribuiriam para a revolução social. Admito que um poema consiga iluminar o leitor, consiga lhe abrir a cabeça. Mas daí a mudar a sociedade... Muito complicado! Abandonei todos os mitos daquela época. Não creio mais em luta de classes. Já aprendi que o capitalismo é como a natureza: invencível.

E a crise econômica que o mundo enfrenta atualmente? Não põe o capitalismo em xeque?

Sem dúvida atravessamos um momento delicadíssimo. Mesmo assim, estou convicto de que o capitalismo resistirá. Trata-se apenas de mais uma crise num sistema que vive de crises. Repito: o capitalismo vai imperar porque segue a lógica da natureza. É brutal, é feroz, é amoral. Não demonstra piedade por nada nem por ninguém. Em compensação, nos oferece uma série de benefícios. O capitalismo, à semelhança da natureza, se desenvolve espontaneamente. Não precisa que meia dúzia de burocratas dite o rumo das coisas, como acontecia nos regimes socialistas. Em qualquer canto, há um cara inventando uma empresinha. De repente, no meio deles, aparece um Bill Gates. São multidões em busca de dinheiro! Impossível deter uma engrenagem tão eficiente. Podemos, no máximo, brigar para que as desigualdades geradas pelo capitalismo diminuam. Aliás, convém que briguemos. Não devemos abdicar de um mundo mais justo, ainda que capitalista.

Como você avalia o governo Lula?

Avalio mal. O Lula é um grande pelego. Sabe aquele indivíduo que se infiltra nos sindicatos para amortecer os conflitos entre trabalhadores e patrões? O Lula age exatamente assim. Por um lado, agrada os banqueiros e os empresários. Por outro, corrompe o povão com programas assistencialistas. Posa de líder popular, e a massa o aplaude. Viva o pai dos pobres! Resultado: todo mundo confia no Lula, o rico e o miserável. Em decorrência, as tensões sociais se diluem. Que maravilha, não? Um país de carneirinhos...

Em setembro de 2010, você completa 80 anos. Sente-se realizado?

Olha, a vida é uma cesta em que, quanto mais se põe, mais se deseja colocar. Estamos sempre partindo do zero. Hoje pinto um quadro ou termino de ler um livro. Fico satisfeito. Mas, amanhã, me pergunto: e agora?

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